quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Escalar

“Aprendi com a primavera; a deixar-me cortar e voltar sempre inteira.” Cecília Meireles

           Frase batida e clichê. Mas nem por isso deixa de ser uma das minhas favoritas. O fato de muitas pessoas a repetirem de forma um tanto cansativa, não faz com que muitas realmente a compreendam ou a apliquem. Para mim, uma das coisas mais bonitas que uma pessoa pode fazer é se entregar de verdade, deixar-se completamente vulnerável. O riscos disso podem ser grandes, mas apenas se você não souber se reconstituir caso precise. Quantas vezes não ouvi que a solução para os meus problemas era deixar de me doar tão inteiramente, tão intensamente? Mas viver assim, pela metade, seja em qual tipo de relacionamento for, para mim, é trair a própria vida. Quando o maior sentido que pude atribuir ao simples fato de existir é apenas o sentir, seja qual sentimento for; deixar de fazê-lo, para mim, é deixar também de existir.

           Acredito ainda no poder da repetição para fazer com que algo se torne verdade. Desde criança gosto dessa frase e a escrevo para mim mesma ocasionalmente. Desde que me entendo por gente repito que sou forte e que aguento qualquer coisa. Hoje sei que essa espécie de “mantra” foi o fio que me segurou nos piores momentos da minha vida. Estou atualmente num desses processos de me reconstruir, e sei que é grande a tentação em aproveitar o momento para construir também muros, mas não o farei. É duro forçar essa perspectiva agora, enquanto ainda estou na metade do procedimento, no entanto sei que poderei futuramente me entregar mais uma vez. E mesmo sabendo que com isso vem também, é claro, a possibilidade de me destruir de novo, sei que vale a pena. Dessa vez em especial percebi algo que não havia notado ainda. Ao analisar todas as vezes em que me joguei assim, em que me doei, percebo uma certa progressão na intensidade e beleza de cada relacionamento e no que retiro de cada um. A cada vez gosto mais do processo de pular naquela oportunidade e a cada vez descubro algo diferente, um sentimento diferente que eu não sabia ser capaz de sentir, que eu sequer sabia que existia. Sim, eu sou uma pessoa forte não apesar de me doar tanto, mas justamente por isso, e jamais deixarei de ser assim.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Quadro

Senti o leve roçar das cerdas do pincel me fazendo cócegas. Era uma manhã de sábado incomumente ensolarada e ela me olhava concentrada enquanto eu sentia o calor da luz do sol que entrava pela janela. Ela não costumava estar acordada em uma hora como aquela, mas havia sonhado comigo e precisou urgentemente se levantar e vir me ver. Normalmente ela passava um bom tempo falando na minha frente com o pincel na mão, bradando-o como um maestro, porém dessa vez eu podia ver que havia algo diferente. Ela ainda estava vestida com a camisa do The Smiths com a qual eu a vi saindo na noite anterior e a cada frase ela derramava mais e mais lágrimas. “Tudo termina onde começa” ela dizia entre uma gota e outra. Percebi nesse momento que ela começou a me mudar, antes eu era feliz e suave, com cores alegres, agora ela começara a sujar o pincel com cores mais escuras e a dar pinceladas mais bruscas. Pincel, gota, palavra, pincel, gota, palavra, que ritmo triste ela havia formado. Ah que diferença do dia em que ela me começou. Lembro-me ainda que ela havia vestido uma camisa do Guns, com um propósito especial brilhando no canto dos olhos e no sorriso esperançoso. Naquele dia algo havia começado e ela estava mais feliz do que nunca. Agora ela me terminava, e eu que achava que iria ficar para sempre livre naquele lugar perto da janela, via-me de repente emoldurado, preso e prostrado em cima de sua cama, para que ela jamais esquecesse. Começou com Guns e terminou com The Smiths, como havia de ser.