segunda-feira, 18 de agosto de 2014

300 quilômetros por hora

Gosto de sentir frio. Em algumas noites particularmente geladas, vou até à varanda de casa, apenas de short e camiseta, descalça. Sinto o chão de granito a congelar meus pés, o frio do metal do parapeito se espalhando pelas palmas das minhas mãos, o vento álgido endurecendo em meu rosto, encosto minha coxa nua no vidro espelhando e sinto minha carne enregelar. Sinto que a morte deva ser algo parecido com isso e penso “é, posso me acostumar”. Subo no pequeno degrau do parapeito e percebo quão fácil seria me jogar, gosto de brincar com a sensação de que posso desistir a qualquer momento. Sinto o mesmo quando ando pela calçada, ao lado de alguma pista de alta velocidade bem movimentada; quão simples seria dar apenas um passo para o lado e... Fim.
 Dizem que a indiferença é a pior dor que se pode infligir a alguém. Para mim, estão errados; indiferença seria alívio. O gelado oposto ao calor que queima minhas pálpebras molhadas.
                And how I long for your cold hands to suffocate me.
A indiferença seria uma boa mudança dessa vida de intensidades e inconstâncias. Tenho um sério histórico de dificuldade em lidar com o meio termo. Por mais que eu, por vezes, saiba fingir conhecer muito bem o equilíbrio. A verdade é que na maior parte do tempo eu me divido entre me jogar de cabeça em tudo (com o maior sorriso no rosto) e querer socar tudo com força aos berros. Viver de zero a 300 km/h é só o que eu aprendi a fazer e o mecanismo interno vai aos poucos se desgastando e eu continuo sentindo que sequer saí do lugar. É claro que se tratando de pessoas eu não conseguiria fazer diferente, vou à toda velocidade de encontro a elas e sempre ouço o quanto elas me são gratas por isso; o estranho é quando olho por cima do meu ombro e noto que elas ficaram para trás, agradecendo e acenando. Nenhuma se dando ao trabalho de vir comigo. Sigo viagem a 300 km/h e continuo aqui, sigo colhendo pessoas e continuo só. Se não posso ter o permanente, penso que o indiferente seria uma boa alternativa.

domingo, 17 de agosto de 2014

Vento e Folhas

Cabeça baixa, encaro meus pés enquanto caminho: a cada passo um some da minha vista enquanto o outro aparece para tomar seu lugar, num esquema de revezamento. Imagino um filme começando, a câmera em primeira pessoa, sempre em primeira pessoa, os espectadores não podem ver o rosto da protagonista. Huh, “Protagonista”, quanta arrogância. Vou mudando os planos, os cortes, os enquadramentos, movimentando a lente e mostrando o cenário em que estou. Cenário árido, grama seca, árvores nuas, escassas aqui e ali e uma pista ao meu lado, acompanhando meus passos. Os carros passam correndo, um a um; não dá sequer tempo de enxergar quem carregam, ou mesmo meu reflexo nas janelas. Procuro então superfícies quaisquer, que sirvam de espelho, e para isso observo as pessoas que passam por mim. Ninguém usando óculos, nenhum relógio, nenhuma fivela sequer. Não há nem mesmo uma poça d’água pelo caminho. Quero poder virar a câmera e mostrar o meu rosto, enxergar nele o que os outros veem. O que nele traz apatia ou espanto, sorrisos ou lágrimas. O que nele é igual e o que é diferente. O que nele faria alguém parar e me encarar como um ser excepcional, o que em mim traria nessa pessoa uma curiosidade insaciável e uma vontade descomunal de caminhar ao meu lado sempre. Quero poder olhar o cadáver que sempre aparece em minha mente e saber se o corpo gelado, duro, estirado, pertence a mim.
De repente percebo o quão estranha me sinto e me pergunto se isso está visível para quem me observa. Busco nos olhares de quem passa por mim algum sinal de reconhecimento da confusão que está por aqui. Que vontade de pará-los, segurá-los pelos ombros e dar satisfações; explicar como me sinto, fazê-los entender que não sou louca, que há motivos por trás da expressão que eu carrego. Quão agoniante é sentir que só eu percebo a mudança, só eu estou com medo do que está por vir. Percebo ser diferente o que é mostrado no meu filme do que é mostrado no deles, mesmo compartilhando do mesmo cenário. Sinto-me um fragmento solitário, perdido.

Num segundo tudo muda, o vento parece querer se rebelar, num movimento louco em círculos leva folhas secas consigo. Todos notam essa mudança e olham assustados para a dança que o vento faz, com seus cabelos e roupas levantando-se para mostrar que compartilham da mesma empolgação que toma o deslocamento de ar. Um simples elemento traz a atenção de todos para o mesmo local, quebrando a desagregação conjunta que antes reinava.  Por maior que seja o esforço para ignorar tudo o que se destaca dos demais, ninguém consegue deixar de notar aquele rompimento com o rotineiramente comum. Aquele enorme pé de vento envolve um seleto e ínfimo número de pessoas, escolhidas a dedo sem motivo algum, como um balde de água fria quando se está dormindo. E por aqueles meros segundos, ainda que os olhares não estejam voltados para mim, enxergamos a mesma coisa e assim sinto-me um pouco menos invisível, agraciada por uma ação imaterial que move o mundo ao meu redor.