O que faz de mim
eu? Respondi não sei quantos perfis pessoais pela internet
afora, escrevi textos e mais textos, cujo caráter autobiográfico por vezes era
explicito e por vezes disfarçado; tenho em meu histórico uma lista enorme de
sessões com diversos psicólogos e psiquiatras e, no entanto, ainda não sei
dizer. Há séculos nos perguntamos o que nos define, desde especialistas como filósofos
de todos os tempos e geneticistas até o adolescente em crise de identidade que
escreve em seu diário: muitos são os que tentam solucionar nossas dúvidas
existenciais. A individualidade humana é um dos nossos maiores mistérios.
No debate criação versus natureza, discutem se a genética
tem mais força que a criação. E me pergunto o real papel das nossas memórias
nessa costura minuciosa e detalhada de aspectos que nos formam. Esses
questionamentos acontecem enquanto observo meu avô paterno, chamado Enéas. Ele está em um estado avançado do mal de Alzheimer e após misturar feijão, arroz e
carne moída e distribuir a maçaroca igualmente pelo prato fundo (devidamente prensada
pelo garfo), decidiu que não vai almoçar, mas que não podem lhe tirar o prato. Não
posso dizer que conheci a personalidade do meu avô a fundo antes que a doença
tomasse conta de sua cabeça. Ele sempre foi uma figura resmungona, que inseria palavrões em todas as suas falas, adorava piadas e palavras chulas e passava o dia todo em
seu caótico escritório escrevendo um livro que nunca acabava. Meu avô parecia,
aos meus olhos, uma figura extremamente caricata. Eu não entendia como aquele
personagem, que vivia a entoar My Bonnie Lies Over The Ocean pela casa e mesmo
em sua braveza parecia ter saído direto de um desenho animado, poderia ser o mesmo
protagonista das terríveis histórias que eu escutava sobre o comportamento dele no passado.
Não me lembro de ter comentado com os meus parentes,
porém, sobre esse desencaixe entre as histórias por eles contadas e a imagem
que eu tinha ao observar meu avô. O seu excesso de raiva, ou o que seja que tomasse
conta dele quando ele tratava os filhos e a minha avó de maneira agressiva, era fato
incontestável dentro da minha família. Realmente pude observar algumas
situações em que me surpreendi com sua exímia habilidade em usar as palavras em
um momento para magoar familiares e no segundo seguinte para confiar piamente
no mais completo estranho que passava. Mas não convivi com aquele ser humano de maneira tão próxima quanto gostava de pensar até pouco tempo atrás, e já me sentia um
tanto órfã de avós. Minha avó materna, desde que me entendia por gente, sempre
esteve em um estado muito avançado desse tal de Alzheimer- palavra cuja escrita
aprendi muito cedo devido às extensas pesquisas que eu fazia sobre o assunto,
numa tentativa de entender porque minha avó nunca havia me reconhecido e eu
nunca havia sequer ouvido sua voz. Enquanto meu outro avô, o pai da minha mãe,
mudou-se para fortaleza quando eu era ainda muito criança. Tenho vagas e
escurecidas lembranças de um cachorro grande e preto e de um enorme relógio de corda
antigo em sua casa em Brasília, o vi poucas vezes depois disso. Então eu
considero que minha dificuldade em conseguir ver meu avô como essa figura tão ruim,
vinha em parte dessa minha falta de uma convivência mais próxima e em parte de
uma desesperada vontade de preservar algo de bom do meu último laço grão-paterno.
No caso da minha avó materna, como tudo o que eu sabia da sua vida e pessoa
pré-doença vinha do que me era dito por outrem, a minha ilusão acerca do
assunto era mais clara, enquanto com o meu avô Enéas eu podia me enganar de uma
forma mais convincente.
Hoje percebo,
porém, o quão pouco sei dele, por isso questiono porque estranho tanto sua
mudança desde que o Alzheimer se tornou mais evidente. Se antes meu avô era
personagem de desenho animado 3D produzido com a mais alta tecnologia digital,
desses que quase se confundem com a vida real, hoje ele é um personagem de
livro infantil; bidimensional, achatado, quase despido de sua essência humana. Em
alguns momentos ainda o reconheço como o mesmo de sempre, seja num “foda-se”
entoado como só ele faz ou na música que ele ainda assovia com frequência,
clamando, saudoso, por sua Bonnie deitada no oceano, como se sua Bonnie fosse a
sanidade perdida. Mas na maior parte do tempo, olho para o meu avô e não
consigo reconhecê-lo como antes. Sentimos a necessidade de definir tudo à nossa volta sempre,
é a nossa forma de entender o mundo e me lembro de aprender sobre isso em
semiótica na faculdade com uma das minhas professoras favoritas. Talvez por
isso eu tenha tomado posse do pouco que eu conhecia e podia observar daquela
pessoa e mesmo sendo escasso o material, emendei aqueles pedaços, preenchendo os
buracos com as minhas próprias carências e expectativas, até formar uma imagem inteira.
Ainda assim, no auge dos meus maiores esforços, hoje vejo pouco desses pedaços, independente
do quanto deles seja ele mesmo e o quanto seja minha visão sobre ele, nessa
figura que anda pela casa segurando uma bola como se fosse uma criança.
Pergunto-me, se apagassem todas as minhas memórias, eu ainda seria eu?