Vez ou outra, naqueles
momentos em que nossos olhos se perdem sem foco levados por devaneios
aleatórios, ainda me pego pensando naquele dia. Não me lembro de todos os
detalhes, o que é estranho porque minha memória costuma ser muito boa para
momentos assim. Não me lembro em qual bairro eu estava hospedada, só lembro que
era em algum lugar na linha azul do metrô. Também não sei dizer para onde
tínhamos ido naquele dia. No entanto, apesar de ter me esquecido do contexto e
das circunstâncias exatas, eu me lembro perfeitamente do momento em si. Se
fecho os olhos, ainda estou andando por aquelas ruas aparentemente vazias naquela
madrugada em São Paulo. Não sei dizer ao certo se realmente estava tão vazio
assim, mas é dessa forma que a lembrança me vem; como se no filme da minha
memória tivéssemos fechado a rua, o bairro, a cidade inteira para abrigar
apenas os personagens que permitíssemos. E a palavra personagem nunca foi tão
apropriada quanto agora para descrever este momento. Ambos interpretávamos
papéis, conscientes ou não. Ainda vejo os prédios cinzas e brancos pintados de
sépia pela luz amarelada dos postes, que tingia também de cores quentes o
asfalto úmido. A cor perfeita para uma memória que mais parece ter sido
imaginada por mim. É tão estranho lembrar de nós dois cantando Sound of Silence
a plenos pulmãos em terras paulistanas, dançando de mãos dadas no meio da rua.
Lembrar daquela dupla de amigos, desconhecidos para nós, que surgiu de repente
no caminho e se juntou espontaneamente à nossa cantoria. Lembrar da nossa despedida
embaixo do prédio, encostados no muro, você chorando emocionado. Um momento tão
perfeito que só pode mesmo ter sido fabricado. Quase como um roteiro de um
filme, que ainda não consigo me decidir se foi um clássico bem escrito que fica
para a história ou uma cópia barata cheia de clichês.
Quando penso em todos os
momentos incríveis que passamos juntos nessa viagem eu só consigo pensar em
como essas seriam algumas das minhas memórias favoritas, se não as tivesse
desperdiçado com você, que de uma hora para a outra foi de uma das pessoas com
as quais mais havia me conectado e me divertido em toda minha vida ao namorado
mais abusivo que já tive. Eu aprendi a lição com Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças, eu entendi a moral da história: lembranças ruins existem por um
motivo e não devem ser apagadas, elas nos protegem de cometer o mesmo erro
novamente. Porém não consigo evitar de hora ou outra sentir uma vontade enorme
de manipular essa minha memória e inserir outra pessoa comigo nesses momentos,
demitir você do papel e regravar as cenas com um novo ator. Não me leve a mal,
eu posso dizer que não tenho mais nenhum apego ao sentimento que eu tive por
você, não se trata de uma dor de cotovelo com uma ferida que nunca se fechou.
Sabe, é que eu sou uma pessoa muito apegada a momentos únicos e experiências
marcantes. Coleciono essas lembranças com muito apreço e cuidado, são elas que
por vezes me tiram de certos abismos em que minha mente doente me coloca. Por
isso fico tão consternada com essas recordações conflituosas de experiências
incríveis que não se encaixam com a verdadeira imagem com a qual você me deixou
no fim das contas. No meu mundo, destruir lembranças assim com uma má companhia
disfarçada de pessoa incrível é um dos maiores crimes que eu poderia cometer.
Não apenas por ser um golpe e tanto no meu ego, por ter me iludido e não ter
sido capaz de enxergar tudo com antecedência e me proteger. Mas também por
colocar em perigo o delicado equilíbrio de memórias redentoras que há anos vem
me mantendo viva.