domingo, 30 de março de 2014

Devaneio

É como se nós nunca tivéssemos acontecido. Procuro em meus pensamentos nossas lembranças e as vejo cada vez mais apagadas. Tento lembrar-me do teu rosto sem precisar do auxílio de tuas imagens e cada vez mais te tornas um homem sem face em minha frente. Um homem sem olhos a me encarar. Já não sei mais a que me apego, de tão distante que estamos. O desejo vai sumindo pelas beiradas, e por mais intenso que tudo o que passamos juntos tenha sido, a extinção chega cada vez mais perto do centro. Essa sou eu desistindo. Não disseste nada, não sentiste nada. Essa sou eu desistindo de algo que nunca existiu. Porque a cada dia me pergunto mais e mais se não foi tudo fruto da minha mente. Resultado de alguma carência. Sonhos causados por noites insones em que, no calor, sentia-me morrer de frio. Apenas um quadro que pintei sozinha, um retrato perfeito de tudo que sempre esperei em alguém. E não há registros nossos que me mostrem o contrário. Foste tudo o que eu sempre quis. Não foste tudo o que eu sempre quis. E sinto a ilusão escorrer-me pelos dedos. Há pouco tempo me encontrava perambulando em abstinência e tive a visão de um oásis. No deserto gélido pensei ter te encontrado cálido a me aliviar. Mais uma das minhas visões que agora se acumulam no meu esconderijo de negações. Pensando agora em como tudo aconteceu, lembro-me que tentaste me avisar. Como quando estamos em um sonho ou pesadelo e um dos personagens nos alerta, com algum gesto ou palavras sutis, de que aquilo não é real. Eu deveria ter te escutado, mas nem chegaste a existir.  Tão estranho e dolorido ter de reaprender a viver sem algo que nunca tive.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Volta Para Casa

Fora uma segunda-feira plena. Do amanhecer, ao acordar atrasada para a faculdade e ter de se arrumar às pressas, sem ter dormido tão bem por ter sido acordada com um susto no meio da noite pelos seus medos e inseguranças. Ao fim do dia, na volta pra casa, sentada de forma desconfortável e espremida na fileira final do ônibus, último lugar que havia sobrado quando ela entrou. Ela pensava, pois era só o que restava a fazer naquele momento. Não havia a voz do professor ou o peso do trabalho a distraí-la e não conseguia evitar que seus pensamentos corressem soltos como uma manada por cima de sua cabeça. Tentava espairecer, percebendo pequenos detalhes. Como o reflexo da luz dos carros no cano que se usa para se segurar e que atravessa o teto do ônibus. Eram pequenos pontos de luz a correr pelo cilindro de metal, pintado de amarelo, de forma a parecer que era por ali mesmo que andavam e não pela rua. No entanto, eram apenas reflexos, ilusões. E ela sabia disso mais do que ninguém. Devaneava e buscava entreter-se, mas acabava voltando para o mesmo desconfortável lugar em sua mente. Olhava para o cano e sua vontade era de agarrar-se a ele com força, indo para onde quer que o veículo controlado por outrem fosse. Porém temia que se assim o fizesse, o peso de sua vida, com desejos não cumpridos, saudades ainda latejantes e histórias inacabadas, acabaria por arrebentá-lo.



" All I can say is that my life is pretty plain
I like watchin' the puddles gather rain
And all I can do is just pour some tea for two
And speak my point of view
But it's not sane, It's not sane"
(No Rain - Blind Melon)