Cabeça baixa, encaro meus pés enquanto caminho: a
cada passo um some da minha vista enquanto o outro aparece para tomar seu
lugar, num esquema de revezamento. Imagino um filme começando, a câmera em
primeira pessoa, sempre em primeira pessoa, os espectadores não podem ver o
rosto da protagonista. Huh, “Protagonista”, quanta arrogância. Vou mudando os
planos, os cortes, os enquadramentos, movimentando a lente e mostrando o
cenário em que estou. Cenário árido, grama seca, árvores nuas, escassas aqui e
ali e uma pista ao meu lado, acompanhando meus passos. Os carros passam
correndo, um a um; não dá sequer tempo de enxergar quem carregam, ou mesmo meu
reflexo nas janelas. Procuro então superfícies quaisquer, que sirvam de espelho,
e para isso observo as pessoas que passam por mim. Ninguém usando óculos,
nenhum relógio, nenhuma fivela sequer. Não há nem mesmo uma poça d’água pelo
caminho. Quero poder virar a câmera e mostrar o meu rosto, enxergar nele o que
os outros veem. O que nele traz apatia ou espanto, sorrisos ou lágrimas. O que
nele é igual e o que é diferente. O que nele faria alguém parar e me encarar
como um ser excepcional, o que em mim traria nessa pessoa uma curiosidade insaciável
e uma vontade descomunal de caminhar ao meu lado sempre. Quero poder olhar o
cadáver que sempre aparece em minha mente e saber se o corpo gelado, duro,
estirado, pertence a mim.
De repente percebo o quão estranha me sinto e me
pergunto se isso está visível para quem me observa. Busco nos olhares de quem
passa por mim algum sinal de reconhecimento da confusão que está por aqui. Que
vontade de pará-los, segurá-los pelos ombros e dar satisfações; explicar como
me sinto, fazê-los entender que não sou louca, que há motivos por trás da
expressão que eu carrego. Quão agoniante é sentir que só eu percebo a mudança,
só eu estou com medo do que está por vir. Percebo ser diferente o que é mostrado
no meu filme do que é mostrado no deles, mesmo compartilhando do mesmo cenário.
Sinto-me um fragmento solitário, perdido.
Num segundo tudo muda, o vento parece querer se
rebelar, num movimento louco em círculos leva folhas secas consigo. Todos notam
essa mudança e olham assustados para a dança que o vento faz, com seus cabelos
e roupas levantando-se para mostrar que compartilham da mesma empolgação que
toma o deslocamento de ar. Um simples elemento traz a atenção de todos para o
mesmo local, quebrando a desagregação conjunta que antes reinava. Por maior que seja o esforço para ignorar tudo
o que se destaca dos demais, ninguém consegue deixar de notar aquele rompimento
com o rotineiramente comum. Aquele enorme pé de vento envolve um seleto e
ínfimo número de pessoas, escolhidas a dedo sem motivo algum, como um balde de
água fria quando se está dormindo. E por aqueles meros segundos, ainda que os
olhares não estejam voltados para mim, enxergamos a mesma coisa e assim sinto-me
um pouco menos invisível, agraciada por uma ação imaterial que move o mundo ao
meu redor.
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