quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Sobre meus avós, Alzheimer e o que nos define

                O que faz de mim eu? Respondi não sei quantos perfis pessoais pela internet afora, escrevi textos e mais textos, cujo caráter autobiográfico por vezes era explicito e por vezes disfarçado; tenho em meu histórico uma lista enorme de sessões com diversos psicólogos e psiquiatras e, no entanto, ainda não sei dizer. Há séculos nos perguntamos o que nos define, desde especialistas como filósofos de todos os tempos e geneticistas até o adolescente em crise de identidade que escreve em seu diário: muitos são os que tentam solucionar nossas dúvidas existenciais. A individualidade humana é um dos nossos maiores mistérios.
No debate criação versus natureza, discutem se a genética tem mais força que a criação. E me pergunto o real papel das nossas memórias nessa costura minuciosa e detalhada de aspectos que nos formam. Esses questionamentos acontecem enquanto observo meu avô paterno, chamado Enéas. Ele está em um estado avançado do mal de Alzheimer e após misturar feijão, arroz e carne moída e distribuir a maçaroca igualmente pelo prato fundo (devidamente prensada pelo garfo), decidiu que não vai almoçar, mas que não podem lhe tirar o prato. Não posso dizer que conheci a personalidade do meu avô a fundo antes que a doença tomasse conta de sua cabeça. Ele sempre foi uma figura resmungona, que inseria palavrões em todas as suas falas, adorava piadas e palavras chulas e passava o dia todo em seu caótico escritório escrevendo um livro que nunca acabava. Meu avô parecia, aos meus olhos, uma figura extremamente caricata. Eu não entendia como aquele personagem, que vivia a entoar My Bonnie Lies Over The Ocean pela casa e mesmo em sua braveza parecia ter saído direto de um desenho animado, poderia ser o mesmo protagonista das terríveis histórias que eu escutava sobre o comportamento dele no passado.
Não me lembro de ter comentado com os meus parentes, porém, sobre esse desencaixe entre as histórias por eles contadas e a imagem que eu tinha ao observar meu avô. O seu excesso de raiva, ou o que seja que tomasse conta dele quando ele tratava os filhos e a minha avó de maneira agressiva, era fato incontestável dentro da minha família. Realmente pude observar algumas situações em que me surpreendi com sua exímia habilidade em usar as palavras em um momento para magoar familiares e no segundo seguinte para confiar piamente no mais completo estranho que passava. Mas não convivi com aquele ser humano de maneira tão próxima quanto gostava de pensar até pouco tempo atrás, e já me sentia um tanto órfã de avós. Minha avó materna, desde que me entendia por gente, sempre esteve em um estado muito avançado desse tal de Alzheimer- palavra cuja escrita aprendi muito cedo devido às extensas pesquisas que eu fazia sobre o assunto, numa tentativa de entender porque minha avó nunca havia me reconhecido e eu nunca havia sequer ouvido sua voz. Enquanto meu outro avô, o pai da minha mãe, mudou-se para fortaleza quando eu era ainda muito criança. Tenho vagas e escurecidas lembranças de um cachorro grande e preto e de um enorme relógio de corda antigo em sua casa em Brasília, o vi poucas vezes depois disso. Então eu considero que minha dificuldade em conseguir ver meu avô como essa figura tão ruim, vinha em parte dessa minha falta de uma convivência mais próxima e em parte de uma desesperada vontade de preservar algo de bom do meu último laço grão-paterno. No caso da minha avó materna, como tudo o que eu sabia da sua vida e pessoa pré-doença vinha do que me era dito por outrem, a minha ilusão acerca do assunto era mais clara, enquanto com o meu avô Enéas eu podia me enganar de uma forma mais convincente.

                Hoje percebo, porém, o quão pouco sei dele, por isso questiono porque estranho tanto sua mudança desde que o Alzheimer se tornou mais evidente. Se antes meu avô era personagem de desenho animado 3D produzido com a mais alta tecnologia digital, desses que quase se confundem com a vida real, hoje ele é um personagem de livro infantil; bidimensional, achatado, quase despido de sua essência humana. Em alguns momentos ainda o reconheço como o mesmo de sempre, seja num “foda-se” entoado como só ele faz ou na música que ele ainda assovia com frequência, clamando, saudoso, por sua Bonnie deitada no oceano, como se sua Bonnie fosse a sanidade perdida. Mas na maior parte do tempo, olho para o meu avô e não consigo reconhecê-lo como antes. Sentimos a necessidade de definir tudo à nossa volta sempre, é a nossa forma de entender o mundo e me lembro de aprender sobre isso em semiótica na faculdade com uma das minhas professoras favoritas. Talvez por isso eu tenha tomado posse do pouco que eu conhecia e podia observar daquela pessoa e mesmo sendo escasso o material, emendei aqueles pedaços, preenchendo os buracos com as minhas próprias carências e expectativas, até formar uma imagem inteira. Ainda assim, no auge dos meus maiores esforços, hoje vejo pouco desses pedaços, independente do quanto deles seja ele mesmo e o quanto seja minha visão sobre ele, nessa figura que anda pela casa segurando uma bola como se fosse uma criança. Pergunto-me, se apagassem todas as minhas memórias, eu ainda seria eu?


3 comentários:

  1. Você é uma das pessoas mais interessantes que conheci.

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    1. Puxa, muito obrigada. Eu realmente me sinto honrada por ouvir isso. A gente se conhece pessoalmente? Qual é o seu nome?

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  2. Que texto mais lindo Érica... Parabéns por adentrar esse mundo do inconsciente tentando decifra-lo e não julga-lo. Maravilhoso!

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